quarta-feira, 2 de dezembro de 2009

egoísmo

"Observo com frequência, que tendemos a atribuir a nossos amigos aquela estabilidade de caráter que as personagens literárias adquirem na mente do leitor. Não importa quantas vezes relemos o Rei Lear, jamais encontraremos o bom monarca levantando seu canecão de cerveja, todas as desventuras esquecidas, num festim palaciano a que estão presentes as três filhas e seus cãezinhos de estimação. Jamais veremos Emma se curar, reavivada pelos sais contidos na lágrima oportunamente vertida pelo pai Flaubert. Qualquer que seja a evolução desta ou daquela personagem entre as capas do livro, seu destino está cristalizado em nossas mentes, e, da mesma forma, esperamos que n ossos amigos sigam esta ou aquela trajetória lógica e convencional que traçamos para eles. Assim, X jamais comporá a música imortal que conflitaria com as sinfonias de segunda classe a que nos habituou. Y jamais cometerá um assassinato. Aconteça o que acontecer, Z nunca nos trairá. Temos tudo bem arranjado em nossas mentes e, quanto mais raramente vemos determinada pessoa, maior é nosso prazer ao verificar, quando ouvimos falar dela, como se vem adaptando obedientemente ao padrão de comportamento que lhe impusemos. Qualquer desvio nos destinos que decretamos nos onfenderia como algo não apenas anômalo, mas imoral. Preriríamos nem ter conhecido nosso vizinho, o vendedor aposentado de cachorros-quentes, caso venhamos a saber que ele acaba de publicar o melhor livro de poesias dos últimos tempos."

Trecho de Lolita, de Vladimir Nabokov.

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